3/15/2013

O fim da boa-vontade

Regressando ao tema do valor dos livros, falo hoje do fim da boa-vontade (goodwill) enquanto elemento variável do valor que atribuímos ao livro.

Tal como no clássico juvenil «Lemony Snicket», faço  o aviso à navegação de que este é um post mais técnico e que, se isso vos aborrece, não percam tempo a lê-lo.

Para quem não sabe, a goodwill é, de facto, e em contabilidade, um dos elementos de variabilidade do processo de criação de valor. Fazendo parte do património intangível detido, podendo surgir através da confiança na marca (editor, autor, etc.) ou, como durante muitas centenas de anos aconteceu, através da reputação do próprio produto (relação do produto com o cliente).

Contrariamente a muitos outros produtos, o livro detinha uma reputação de fidedignidade, de credibilidade. O que estava escrito era mais importante e verdadeiro – patente em múltiplas áreas da sociedade, desde a legislação, passando pela religião e terminando na literatura ou ficção. Por outro lado, o valor do livro tinha em conta a perenidade dessa informação e o chamado «valor de troca», ou seja, havia a ideia de que com a leitura de um livro nós estaríamos a aumentar a nossa capacidade de realizar outras ações que nos valorizassem posteriormente (o livro enquanto ferramenta da educação, da cidadania, do aumento das competências de trabalho). O próprio livro de literatura era visto assim, como capaz de alargar horizontes e aumentar a nossa capacidade (criativa?, esquemática?, relacional?, comunicacional?) para ascender a cargos superiores e mais bem remunerados.

Escusado será explicar como, em muito larga medida, isso terminou.
Terminou por múltiplos motivos: o mundo digital e o fim dos mediadores tradicionais – patente na morte da imprensa −; a velocidade da informação como primeiro determinante na formação da reputação; o excesso de informação e de textos disponíveis; a inversão de alguns dos critérios de publicação – star system strategies, fast publishing strategies; interplatform publishing and intermedia produt development; frontlist strategies, ou até estratégias de ajustamento/ocupação do mercado, como multiple short seller strategies (ou seja, usamos o nosso esforço de investimento para empurrar o canal, criando escala e fazendo com que ele dependa de nós e afaste os outros, que é uma forma de aldrabar sem que a Autoridade da Concorrência possa processar...) –, etc.

A verdade é que hoje o livro já não, na maior parte das vezes, visto como um objeto «especial», onde o dinheiro é menos importante do que aquilo que ele representa, aquilo que ele nos dá. Para o cliente, o custo tornou-se mais importante do que aquilo que achamos que é, inverteu-se a ordem da avaliação do produto.

Não digo isto com tristeza, muitas são também as alterações que este novo paradigma traz, algumas delas vantajosas, permitindo a renovação de critérios obsoletos. Desde logo, o mercado atual alterou a sua hierarquização qualitativa anterior – salão dos famosos / salão dos excluídos – e outros critérios (melhores? piores?) se levantam: valorização da novidade face à qualidade (onde os jovens autores são mais «badalados» do que os experientes); reputação assente na imagem pública e a criação integrada de conceitos de global de comunicação (onde o autor não é só o autor, mas uma figura pública, com opinião pública, manias e outras características vendáveis, tendo de revelar gostos e detalhes privados para alimentar a curiosidade e da fixação das pessoas); mas também a criação de nichos de «sucesso», e o crescimento das categorias dispersas.

O que importa aqui referir é que, para a larga maioria da população – lembremo-nos que o valor é consumer driven, e cada leitor é diferente − livro já não vale por ser um livro, mas está no mercado como mais um produto, sem características que o elevem acima de outros produtos.

Eu sei, senhores revisores e linguístas, que teve imensas orações copulativas e adversativas, mas pelo menos evitei notas de rodapé :-)

Nuno Seabra Lopes

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